Herman Melville[2] é mais conhecido pelo romance Moby Dick, escrito dois anos antes da publicação da história de Bartleby[1], em 1853.
Grandes poetas e pensadores como Giorgio Agamben e Byung-Chul Han fazem importantes análises e referências a esta obra. Ninguém menos que Jorge Luis Borges considera Bartleby uma das obras literárias mais importantes da humanidade.
Bartleby é um homem cuja atitude incomum de negar-se a fazer qualquer coisa que lhe é solicitada, intriga seu chefe e gera incômodo no leitor. “— Prefiro não fazer, prefiro não ir, prefiro não falar” são suas respostas constantes, sempre expressadas com convicção e tranquilidade. Engana-se quem pensa que se trata apenas de um conto cômico. Há provocações que levam a reflexões existenciais como aquelas presentes nas obras de Dostoiévski[3]. O personagem principal é tão criativamente surreal ao melhor estilo de Kafka[4].
Na sua principal obra, Sociedade do cansaço, Han vai dedicar o sexto capítulo para fazer uma leitura patológica de Bartleby. Para Han a obra descreve um “universo de trabalho desumano, cujos habitantes, todos eles, são degradados a animal laborans[5]”. ´
Vale lembrar que para Hanna Arendt[6] o trabalho é a vida do animal laborans. O trabalho pelo trabalho, sem importar o impacto ou benefício que este gera ao outro ou a sociedade. Neste sentido, as pessoas são meras engrenagens e mercadorias dentro de um sistema que privilegia o consumo irrefletido. Diferente do homo faber que se “conecta com a obra, ou seja, com a modificação realizada na natureza a partir de um material que produz algo duradouro”.
O animal laborans de Han é diferente. Na sua análise ele diferencia a sociedade disciplinar descrita por Melville da sociedade de desempenho dos dias de hoje. Ele vai escrever assim:
“Ali, toda vida foi apagada. Também Bartleby instala-se nos túmulos e morre em total isolamento e solidão. Ele representa ainda um sujeito de obediência. Ele ainda não desenvolve sintomas daquela depressão que é uma marca característica da sociedade do desempenho pós-moderna. Os sentimentos de insuficiência e de inferioridade ou de angústia frente ao fracasso ainda não fazem parte da economia dos sentimentos de Bartleby. Ele não conhece autoacusações e autoagressões constantes.” [7]
Autoacusações e autoagressões que, segundo Han, estão nas bases dos casos de burnout e de depressão, tão presentes na vida contemporânea.
É fato que Bartleby está numa sociedade disciplinar, mas não acho que é ele quem representa a obediência. Bartleby não adoece por ser mais um no meio dessas engrenagens perniciosas do trabalho sem sentido, mas por ser negligenciado e excluído ao não se encaixar. Devemos nos atentar que patologias psíquicas não são percebidas quando seus sintomas servem ao sistema socioeconômico. O perturbado se ajusta ao modelo existente que gera perturbação, logo não há percepção de doença.
Comecemos com a autodescrição do narrador da história, que é o chefe de Bartleby.
“Sou um daqueles advogados de pouca ambição que nunca se dirige a um júri ou obtém qualquer tipo de reconhecimento público; mas que, na suave tranquilidade de um retiro sossegado, realiza um trabalho sossegado com títulos, hipotecas e escrituras de homens ricos”.
Nota-se a submissão, a evitação do confronto, a opção pela existência de conveniência, mas não há busca pela autenticidade. Há ainda os ingleses Turkey e Nippers. Enquanto o primeiro sofre de uma afobação inexplicável, mudando de humor conforme o período do dia, sendo dócil pela manhã e irritadiço a tarde, o segundo é bastante ambicioso e passa o dia a praguejar e ranger os dentes. Com sua raiva as vezes contida as vezes explicita, vive atormentado por um distúrbio intestinal psicossomático.
É neste contexto que chega Bartleby. Respondendo a um anúncio de emprego ele aparece no escritório e a primeira impressão que tem seu chefe é a de “um jovem inerte, palidamente limpo, tristemente respeitável, incuravelmente pobre”.
Logo de cara Bartleby vai causar perplexidade com sua atitude. Ele se instala atrás de um biombo, completamente isolado e lá permanece praticamente imóvel, fitando a uma parede e se alimentando apenas com biscoitos de gengibre. Quando é solicitado para uma tarefa pela primeira vez, eis o que acontece nas palavras do narrador.
“… quando o chamei, dizendo rapidamente o que queria que ele fizesse — mais precisamente checar um pequeno documento comigo. Imagine minha surpresa, ou melhor, minha consternação, quando, sem se mover de sua privacidade, Bartleby respondeu num tom de voz singularmente suave e firme: — Prefiro não fazer. Sentei-me no mais absoluto silêncio durante alguns instantes, tentando recompor meu abalado raciocínio. De imediato, ocorreu-me que eu tinha sido enganado por meus ouvidos ou que Bartleby não tinha compreendido o que eu quisera dizer. Fiz novamente o pedido no tom mais claro que consegui. Mas a resposta anterior veio com a mesma clareza: — Prefiro não fazer”.
Bartleby não está disposto nem mesmo a fazer o favor de colocar o dedo em uma fita para ajudar a embrulhar um presente. Com uma certa comicidade, esta situação se repete em várias outras circunstâncias, deixando desesperançado o chefe, que, num dado momento, apela a Bartleby que seja minimamente razoável: — “Presentemente, prefiro não ser um pouco razoável” é a resposta.
Incapaz de ver uma solução, o chefe começa conclui que é bastante inviável permanecer com Bartleby no escritório. É interessante notar que ele, mesmo intrigado e sem compreender o comportamento do seu novo funcionário, procura sempre encontrar alguma desculpa para não o demitir.
“Pobre rapaz, pobre rapaz!”, pensei eu, ele não é mal-intencionado. Além disso, viveu tempos difíceis, merece indulgência. Esforcei-me também para ocupar-me imediatamente e, ao mesmo tempo, aliviar meu desânimo. Tentei acreditar que, durante a manhã, quando lhe parecesse agradável, Bartleby, de iniciativa própria, surgiria de seu canto e marcharia decididamente em direção à porta”.
Esta e outras passagens mostram porque alguns artigos fazem referência a esta obra como exemplo de um transtorno de procrastinação.
O principal efeito que a relação entre Bartleby e o chefe causa é a perplexidade. Esta quebra com o óbvio, com a soberania, a hierarquia, o fato dele não se intimidar com a autoridade, deixa os outros personagens e os leitores atônitos, especialmente por que esperam alguma reação do chefe. Este começa inclusive a duvidar daquilo que até então achava óbvio. Bartleby o faz pensar. – Como assim, preferir algo? Há o que preferir?
Dentro desta obviedade há o reconhecimento de que o trabalho é enfadonho, mas há pessoas que deveriam fazê-lo de bom grado.
“Evidentemente, é parte indispensável do trabalho de um escriturário verificar a correção de sua cópia, palavra por palavra. Quando há dois ou mais escriturários num escritório, eles se ajudam nessa revisão: enquanto um lê a cópia em voz alta, o outro confere com o original. É uma tarefa muito chata, cansativa e demorada. Posso imaginar que, para pessoas de sangue quente esse trabalho beire o intolerável. Não consigo imaginar, por exemplo, que o fogoso poeta Byron teria se sentado de bom grado com Bartleby para conferir um documento legal de, digamos, quinhentas páginas escritas em letra miúda”.
À medida que o chefe vai tentando contornar a “preferência de não fazer” de Bartleby, ele oscila entre a irritação do insucesso e a racionalização que justifica a permanência do resistente escriturário no emprego. Quando Bartleby faz do escritório também sua moradia, esta oscilação fica ainda mais radical. Primeiro ele justifica sua inação, buscando uma forma de se sentir bem com ela.
“…é bastante evidente que Bartleby vinha fazendo dali o seu lar, seu quarto celibatário. Então, um pensamento tomou imediatamente o meu pensamento: que miseráveis falta de amigos e solidão se revelaram naquele instante! Sua pobreza é imensa; mas sua solidão, que terrível!”
Alguns eventos depois, decide por mais um ultimato:
“— Chegou a hora. Você precisa deixar este escritório. Sinto muito por você. Aqui está algum dinheiro, mas você deve ir embora. — Prefiro não ir — respondeu, ainda virado de costas para mim. — Você deve ir.”
Extremamente incomodado, mas se sentindo impotente de posicionar-se adequadamente e de agir diligente e eficazmente, o chefe decide mudar o escritório para outro endereço e assim ter a desculpa perfeita para demitir Bartleby. Ele assim o faz. Ele se vai e Bartleby fica.
Mais tarde o chefe vai perceber que dar as costas para o problema não é a mesma coisa que solucioná-lo. Bartleby continuou morando no antigo escritório e não demorou muito para que os proprietários daquele imóvel procurassem pelo chefe exigindo que ele se responsabilizasse pelo seu antigo empregado.
Diante da recusa do chefe de tomar alguma medida, Bartleby acaba preso, mas por não representar perigo e por não estar detido por um crime grave, Bartleby circula livremente pela prisão e seus pátios.
Quando o chefe vai visitá-lo, é informado de que Bartleby não está se alimentado. Vaga sozinho pelos pátios ou fica horas com rosto voltado para um grande muro.
Eles têm então este último diálogo:
“— Eu conheço você — disse Bartleby, sem virar-se para olhar — e não quero lhe dizer nada.
— Eu sei onde estou — Bartleby respondeu. Mas nada mais disse, então o deixei”.
— Não fui eu quem o trouxe para cá, Bartleby — falei, profundamente ferido por sua suspeita implícita. — E, para você, este não deve ser um lugar tão vil. Ficar aqui não é vergonhoso para você. Veja, não é um lugar tão triste como se pode imaginar. Olhe, ali está o céu, e aqui, o gramado.
Mais tarde, o chefe busca por Bartleby nos pátios e o encontra encolhido junto a um muro. Inerte, sem respirar. Bartleby está morto.
O conto de Melville permanece vivo e ainda nos intriga. Estaria Bartleby resistindo pacificamente à desumanização no trabalho, pagando o preço de um mártir? Seria ele mesmo apenas mais uma vítima desta falta de sentido no trabalho, que o tornou apático e sem motivação para viver? Ou será que ele personifica o sofrimento e as consequências da procrastinação?
Bom, o chefe finaliza sua narração mencionando um boato sobre a vida pregressa de Bartleby, cuja história até então era absolutamente misteriosa. Parece que ele tinha trabalhado nos correios, no departamento de cartas que não encontram os destinatários. Nos EUA estas correspondências se chamam dead letters, cartas mortas.
O chefe assim reflete: “Quando penso sobre esse boato, não posso expressar adequadamente as emoções que tomam conta de mim. Cartas mortas! Isso não se parece com homens mortos? Pense num homem cuja natureza e má-sorte fizeram tender a uma pálida desesperança — pode qualquer trabalho parecer mais adequado para aumentar essa desesperança do que lidar continuamente com essas cartas mortas e classificá-las para as chamas? Pois elas são incineradas anualmente em abundância. Algumas vezes, o pálido funcionário encontra um anel dentro do papel dobrado — o dedo a que se destinava, talvez, esteja apodrecendo debaixo da terra; uma nota bancária enviada em rápida caridade — aquele a quem iria aliviar já não come nem passa fome; perdão para aqueles que morreram em desespero; boas novas para os que morreram sem assistência em calamidades. Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte. Ah, Bartleby! Ah, humanidade!”
“A única forma de lidar com um mundo sem liberdade é se tornar tão absolutamente livre que sua própria existência é um ato de rebelião.” (Abert Camus)
[1] Bartleby, o escriturário – uma história de Wall Street, 1853
[2] Herman Melville (1819 — 1891)
[3] Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881)
[4] Franz Kafka (1883 — 1924)
[5] Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han – Editora Vozes, 2015
[6] Hanna Arendt (1906 – 1975)
[7] Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han – Editora Vozes, 2015