Resumo: Fazer o que se deve pode significar abrir mão de prazeres imediatos. Ter como fim a satisfação de desejos e a conquista de poder leva a ciclos que cada vez mais tem curta duração. Conscientizar-se de nossos verdadeiros valores abre caminho para que vejamos com mais clareza como cada ação e cada decisão estão a serviço de um propósito maior.
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Quando o Nilton me procurou fazia mais de três anos que ele tinha assumido a diretoria comercial de uma grande distribuidora de alimentos[1]. Empresa familiar cujo comando havia passado recentemente para o filho do fundador. Estava no mercado havia várias décadas com bom histórico de desempenho dentro do seu segmento, mas vinha enfrentando queda significativa no seu faturamento dos últimos doze meses.
Com menos de sessenta dias no cargo Nilton apresentou um turnaround plan bem consistente que envolvia, evidentemente, uma série de ações reestruturação dos processos comerciais existentes, mas que também propunha mudanças no modelo e na abrangência do negócio[2]. Não vou esmiuçar aqui a execução de toda a estratégia proposta por Nilton, que foi sem dúvida a parte mais difícil. Por ora, vou me ater somente aos resultados, pois acima de tudo foram os números que deram a ele enorme credibilidade e que fizeram dele um executivo muito celebrado por seus pares e pelo CEO da empresa. Com a implementação do plano as vendas responderam rápido, com o incremento de dois dígitos quando comparadas com o mesmo período do ano anterior. As margens também melhoraram devido aos novos produtos introduzidos.
Enquanto Nilton compartilhava comigo todos os detalhes de suas conquistas, inclusive as compensações financeiras que recebeu na forma de bônus e promoção, ele exibia uma postura corporal incoerente com seu discurso. Ombros caídos, braços largados e imóveis, olhos sem brilho apontados quase o tempo todo para o chão e a voz monótona de quem lê um manifesto que não acredita. Depois de uma longa pausa ele levanta a cabeça para dizer algo que por fim alinhava a narrativa com as expressões não verbais:
“Estou enfrentando um dilema e não estou sabendo lidar com a situação”.
Nilton então me confessou que tinha pensado em pedir demissão porque não se sentia mais útil para a empresa. Claro que havia a necessidade de alguns pequenos ajustes, mas no geral a área comercial estava funcionando muito bem e sua equipe teria condições de manter a estratégia viva e bem executada. Além disto, um ex-colega o havia convidado para que fosse seu sócio em uma empresa no segmento de tecnologia, na fase de startup, que já contava com todo o aporte necessário de “investidores anjos”[3]. A proposta era instigante, o potencial de valorização era enorme e os riscos não pareciam tão grandes. Tudo indicava que era um bom momento para pedir demissão e buscar novos desafios.
A tomada de decisão
Quando Nilton falou com seu CEO, este ficou extremamente contrariado com a possibilidade de perder o executivo que tinha sido responsável por um dos melhores momentos da empresa e lhe fez uma oferta inusitada. Pediu a ele que permanecesse no cargo para coliderar com a gerente de recursos humanos o processo de transformação cultural da organização. Disse ainda que ele era um líder muito respeitado por todos e que sem sua ajuda seria bem mais difícil fazer as mudanças necessárias. Nilton ficou surpreso e ao mesmo tempo honrado com a proposta. Quando tinha apresentado o seu plano de recuperação dos negócios três anos atrás, ele chegou a apontar alguns aspectos culturais que poderiam dificultar a estratégia comercial. Ele lembrou como foi difícil conseguir mudar o sistema de remuneração variável e como sua equipe sofreu no início quando precisou do apoio das áreas de marketing e financeira em muitas das ações promocionais. Portanto, ele sabia da importância de um processo de mudança da cultura organizacional, só não imaginava que ele poderia estar à frente de um. Peter Drucker me veio à mente e eu disse – “Culture eats strategy for breakfast – A cultura pode sabotar qualquer estratégia”[4]. Nilton ficou pensativo por alguns segundos e então ponderou: “Acho que a estratégia vem sendo mantida às custas do meu constante patrocínio. Talvez, com minha saída, muitas das coisas que implementamos sejam abandonadas e outras antigas retomadas. Isto não seria bom”.
Eu não precisei esperar o resultado do assessment[5] de valores pessoais para saber qual seria a decisão de Nilton. Além de ser movido por desafios e de buscar o reconhecimento pelo seu sucesso, caraterísticas facilmente identificáveis ao longo de sua história profissional, ele tomou consciência de valores muito arraigados: Família, lealdade e cumprimento do dever. O CEO tinha tocado em um ponto crucial quando disse “sem você não conseguiremos”. Nilton sentia que era seu dever ajudar a empresa, especialmente por sua equipe, vista como uma família por ele. Nilton por fim aceitou permanecer na distribuidora e liderar o projeto de transformação cultural[6]. (caso não consiga fazer o download solicite a versão PDF por e-mail)
Incorporando Nanny McPhee
Bem, o primeiro dilema de meu cliente estava aparentemente superado. Decisões que passam por suficiente reflexão para avaliar os prós e os contras e que terminam alicerçadas em valores pessoais tendem a ter bons prognósticos e trazer paz de espírito. Há quem diga que valores podem ser classificados em negativos e positivos, caso estejam a serviço do mal ou do bem, respectivamente. Eu não concordo inteiramente com esta visão e tampouco com a ideia de valores melhores ou piores. O que importa, no contexto que estamos tratando aqui, é a força e a consistência que eles dão à decisão.
Não demorou muito para que a consistência da decisão de Nilton fosse colocada à prova. Ele se deparou com a dura realidade de que nenhuma mudança organizacional é possível sem que as pessoas, principalmente as que tem cargos de liderança e/ou poder de influência, mudem primeiro. Outro aprendizado importante foi o de que a mudança pessoal é um processo complexo que precisa derivar de uma escolha convicta, ou seja, ninguém muda por decreto ou porque prometeu que vai mudar. Por mais que Nilton tivesse feito progresso com a introdução de novas políticas, processos, rotinas, etc., alguns focos de resistência ainda estavam muito enraizados. Um deles e seguramente o principal era a gerente de recursos humanos, com quem ele compartilhava a liderança do projeto. Sobrinha do fundador e com mais de vinte anos de empresa, a responsável pelo RH parecia se incomodar com o protagonismo do meu cliente. Sem contar que a parte mais importante das mudanças organizacionais propunha alterações fundamentais no papel dos gerentes, cujo perfil passaria a ser de líderes servidores e desenvolvedores de pessoas, atuando como coaches internos de seus times e como os verdadeiros gestores de pessoas. Grande parte das atribuições de RH ficariam esvaziadas ou perderiam visibilidade.
À medida que os trabalhos avançavam os conflitos entre Nilton e a gerente de recursos humanos ficavam mais frequentes. Num dado momento o CEO o chamou para uma reunião e propôs que ele se retirasse do projeto de cultura para assumir um outro desafio, a implantação de uma nova unidade de negócios do grupo, no segmento de varejo. Nilton desconfiou que num dos almoços dominicais daquela família sua carta de demissão já havia sido rascunhada, mesmo assim recusou-se a abrir mão do que entendia ser sua missão.
No meio de toda esta turbulência nós tivemos um encontro que foi bem marcante para mim. Ele me disse: “É engraçado como algum tempo atrás eu me sentia pouco relevante para a empresa e insistiram tanto para que eu ficasse. Agora que estamos fazendo mudanças verdadeiramente substanciais, que com certeza farão muito bem para a organização, não me sinto bem-vindo. Não importa. Nunca me senti tão identificado com um projeto antes. Vou até o fim”. Fiquei um tempo olhando para ele. Parecia até mais alto, tinha uma postura ereta, brilho nos olhos, discurso firme e transmitia uma energia que eu não tinha visto até então. Não resisti à comparação com a Nanny McPhee[7], a babá mágica que tinha a seguinte fala: “Se vocês precisarem de mim, mas não me quiserem, lá estarei, mas se vocês não precisarem de mim e me quiserem, então já terei ido.” Nilton riu.
Façamos um rápido parênteses para falar desta comédia do cinema que tem a bela Emma Thompson no papel principal e que é de uma simbologia espetacular. A babá se apresenta para cuidar dos sete filhos do viúvo Cedric Brown (Colin Firth) que já tinham espantado 17 cuidadoras anteriores. É curioso notar como a aparência de McPhee, com grandes verrugas no rosto, nariz deformado e um dente incisivo bem proeminente, parece mostrar como as crianças a percebem no início, rejeitando a disciplina e o rigor que ela impunha. Com a ajuda de poderes mágicos a babá vai conquistando o respeito e o carinho de todos, enquanto que, simultaneamente, seu visual vai aos poucos perdendo aquelas peculiaridades desagradáveis até revelar um rosto angelical, de expressão doce e amistosa. Esta transformação na sua aparência simboliza o quanto ela passou a ser amada mesmo adotando postura e ações impopulares. Uma devoção ao que era necessário, ao dever, à missão, ao propósito, ao que dava sentido a sua vida ao invés de efêmeros tapinhas nas costas.
A força da vontade de sentido
Viktor Frankl[8] considera que a autotranscedência (ir além de si mesmo, saber que é parte de um todo maior e agir de acordo com isso) se manifesta na busca última do ser humano: a vontade de sentido. Ele, portanto, critica as duas principais escolas de psicologia de Viena em sua época, a psicanálise de Sigmund Freud e a psicologia individual de Alfred Adler, que, segundo Frankl, oferecem um ponto de vista onde a autorrealização é um fim em si mesma, respectivamente a vontade de prazer e a vontade de poder. Assim como a felicidade, a autorrealização é na verdade um efeito, isto é, resulta da realização de um sentido. A combinação destas três forças pode ser representada no gráfico abaixo, onde o poder (autonomia) pode ser considerado como meio para se cumprir o dever (agir em função de um sentido) e o prazer (realização) aparece como consequência.
Não é fácil lutar contra nossas necessidades de pertencer e de acolhimento quando o propósito as confronta. No caso do Nilton também não foi, ou melhor, não tem sido, já que sua jornada na distribuidora continua. Ele precisou desenvolver meios de melhorar seu poder de influência e resiliência para superar as resistências. Ele construiu novas alianças e aprendeu a fazer algumas concessões, sem comprometer seus valores ou o projeto, é claro. Quando algumas funções foram redesenhadas ficou estabelecido que recursos humanos teria um papel mais estratégico e que teria uma cadeira no recém-criado conselho consultivo. A gerente da área, agora uma aliada, concordou em se submeter a um programa de desenvolvimento para atuar adequadamente com o novo escopo.
A última vez que falei com Nilton ele estava assumindo a função de COO e era o primeiro na linha de sucessão do CEO. Sua expressão facial se via límpida e resplandecente. Pelo que senti, ele tinha perspectivas de se manter relevante para a empresa por muitos anos ainda. Mesmo que para isto algumas “verrugas” voltassem a surgir no seu rosto.
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Sobre o autor: Wagner Rodrigues é psicólogo, pós-graduado em comunicação empresarial/marketing pela ESPM e com MBA pela FIA/USP. Coach executivo e de vida com certificação pela ICF – International Coach Federation, Master practitioner em programação neurolinguística pela SBPNL, terapeuta em EMDR e apaixonado pelas abordagens fenomenológicas existenciais aplicadas ao coaching e a psicoterapia. ____________________________________
Referências:
[1] Nomes, segmento da empresa e nomenclatura de cargos foram modificados para preservar a confidencialidade requerida neste tipo de atendimento.
[2] Ele incluiu itens de conveniência de baixo custo entre os produtos comercializados e liderou uma forte expansão para aumentar os pontos de venda na periferia, buscando pequenos estabelecimentos que não eram atendidos ou que recebiam um serviço ruim de outros distribuidores
[3] O Investidor Anjo é normalmente um empresário, empreendedor ou executivo que já trilhou uma carreira de sucesso, acumulando recursos suficientes para alocar uma parte (normalmente entre 5% a 10% do seu patrimônio) para investir em novas empresas, bem como aplicar sua experiência apoiando a empresa.
[4] Literalmente “a cultura come a estratégia no café da manhã”.
[5] individual Values Assessment© – PeopleFirst DPO).
[6] Compartilhei com Nilton o modelo de transformação cultural da PeopleFirst DPO e revisei com ele os elementos principais.
[7] Nanny McPhee, a babá encantada – comédia de 2005 estrelada por Emma Thompson e Colin Firth. Dirigida por Kirk Jones e baseada no livro de Christianna Brand – Bilheteria: 122,4 milhões USD
[8] Frankl, V. E. (1991). El Hombre En Busca De Sentido. Editorial Herder S.A., Provenza 388, Barcelona. Viktor Frankl foi um psiquiatra austríaco que criou a Logoterapia.