Ao reler alguns trechos do livro “As confissões” de Aurélio Agostinho, então bispo de Hipona, me deparei com uma frase que me chamou a atenção.
“Meu peso é meu amor; para onde quer que eu vá, é ele quem me leva.” (Santo Agostinho)
Agostinho, que só seria canonizado séculos mais tarde, defendia que todos os corpos tendem a buscar repouso em um lugar que lhes é próprio. O fogo sobe, a pedra cai, o óleo colocado na água flutua e a água no óleo afunda. Quando um corpo não está onde deveria, se agita, até que possa encontrar-se no seu justo lugar. A este movimento ele chamou de peso e o amor é o peso que direciona o ser humano.
Depois de ler este e outros trechos, não pude evitar fazer paralelos com a condição humana atual, mesmo tendo sido a obra escrita no século V, no alvorecer da idade média. Foi apenas um milênio depois que alguém conseguiu produzir impacto similar ao de Santo Agostinho, expressando numa única frase a força direcionadora deste exclusivo sentimento humano. Foi Blaise Pascal, filósofo, físico e teólogo francês que viveu nos anos 1600, o autor deste feito. Ele escreveu que:
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”. (Blaise Pascal)
Comumente vemos a citação de Pascal ser usada como um bordão para atitudes impensadas ou apaixonadas que levam a decisões equivocadas ou no mínimo questionáveis. Claro, é verdade que o coração, ou melhor, aquilo que ele representa, não opera pelos mecanismos da razão, mas é um erro imaginar que por causa disto seus critérios sejam inferiores. Na verdade, dependendo do enfoque, talvez as “razões” do coração sejam superiores.
Eu me detive na frase de Santo Agostinho porque ela se alinha em muitos aspectos à proposta de valores de Max Scheler [1] que, por sua vez, influenciou bastante na logoteoria de Viktor Frankl, uma das abordagens que mais estudo para meu trabalho com saúde mental.
Scheler é muito conhecido por sua dedicação à axiologia e por contribuir nesta área com sua hierarquia universal de valores (fig.1).
Olhando para a figura podemos notar que, segundo sua hierarquia, os valores vitais são superiores aos valores sensíveis. Por exemplo, uma pessoa é capaz de sacrificar o prazer de saborear uma comida que ela aprecia muito, comendo menos do que tem vontade, visando assim preservar a sua saúde. Segundo Scheler, a preservação da saúde está no nível dos valores vitais enquanto o prazer de degustar o prato corresponde aos valores sensíveis.
Entretanto, pouco se fala daquela que eu considero a principal contribuição deste brilhante fenomenólogo alemão: Estabelecer uma correlação dos valores com nossos sentimentos. De acordo com sua teoria os valores são intuídos pela percepção emocional no momento da vivência, nos atos de preferir e postergar, amar e odiar. Os valores, assim como as essências das coisas, são universais e objetivos, definidos a priori. Captamos o valor intuitivamente através das sensações de prazer ou desprazer naquela vivência específica. Não é a razão que toma a frente neste processo.
Para entender melhor seus pressupostos sobre os valores, temos que lembrar da visão scheleriana de ser humano. Para além do homem instintivo (paixões e pulsões) e do homem racional, Scheler vai identificar uma outra dimensão do ser humano, a espiritual, que é aquela que nos faz agentes da razão e da verdade, da liberdade e dos valores. Podemos, inclusive, ver na sua hierarquia (fig. 1), que os níveis dos valores espirituais e sagrados são superiores aos demais.
Por isto Frankl [2], que adotou de Scheler esta visão tridimensional (biopsíquica espiritual), vai dizer que, na análise existencial, considera-se que o ser humano tem valores diante de si, enquanto, para as teorias mecanicistas, ele tem os instintos as suas costas.
“… o homem não é impulsionado pelo instintivo, mas é arrastado pelo que tem valor”. (Viktor Frankl)
A vontade de sentido é uma manifestação da dimensão espiritual do ser humano e a descoberta do sentido se dá na realização de valores, de forma absolutamente prática. Com nosso trabalho, por exemplo, temos a oportunidade de dar ao mundo o que temos de melhor, sob a forma de nossas obras, produções e criações. Estes valores são os de criação.
Há uma história muito bonita, de um catador de lixo, que ilustra muito bem como há um sentido para ser descoberto em tudo que a vida coloca diante de nós. (Veja este e outros vídeos clicando aqui para acessar a playlist)
Temos ainda a possibilidade de nos orientarmos por valores vivenciais, que, quando realizados, nos permitem a descoberta do quanto estamos enriquecendo nossa existência quando destravamos nossa capacidade de receber, apreciar e contemplar. Enquanto os valores de criação são mais ativos, os vivencias são mais receptivos.
A verdade é que, dependendo das condições às quais o ser humano está submetido, talvez ele não possa realizar valores de criação ou de vivência. Não dá para ignorar a força de fatores socioeconômicos e, principalmente, dos inevitáveis confrontos inerentes à existência, que nos colocam diante de situações que não podemos modificar.
Nestes momentos ainda nos resta uma alternativa, a liberdade de escolher como nos posicionarmos para enfrentar o desafio imposto pela vida. Seja uma doença, uma perda ou a responsabilidade pelos por nossos atos. Temos então a oportunidade de realizar valores atitudinais, que são representados pela postura que adotamos diante das “situações-limite” da existência, que de acordo com Karl Jasper são a morte, o sofrimento e a culpa.
Nossa saúde mental não é mantida a partir da autorrealização, ou seja, da satisfação de impulsos biopsíquicos. O que preserva a saúde mental e, em última instância, a fortalece, é o esforço para desobstruir nossa vontade de sentido e realizar os valores em cada oportunidade que a vida nos dá.
[1] Max Scheler (1874 – 1928): filósofo alemão, conhecido por seu trabalho sobre fenomenologia, ética e antropologia filosófica, bem como por sua contribuição à filosofia dos valores.
[2] Viktor Frankl (1905 – 1997): psiquiatra e neurologista austríaco, pai da Logoterapia.