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O mal banal e a educação amoral

Eu entendo você caro leitor. Seria mesmo melhor ter uma imagem de homenagem à professora Elizabeth Tenreiro que foi mais uma vítima desta violência absurda que assola o mundo todo e parece não ter limites. Entretanto, precisamos chamar a atenção para outros aspectos deste mal.

É muito desconcertante ver a imagem de um santuário violado, eu sei. Assim é uma sala de aula, um santuário que no nosso imaginário deveria ser intocado. Deveria ser um lugar de aprendizado, de vivências significativas, um ambiente imaculado, mágico e rico.

Infelizmente esta aura admirável da escola se desfaz quando a realidade da educação do país nos choca ao esfregar na nossa cara a desvalorização do ofício que outrora chamamos de mestre. Hoje em dia quem abraça o magistério é visto como herói, louco ou apenas mais um trabalhador que não teve outra opção na vida, pois além do abandono profissional os professores convivem com o risco de morte.

Jornalistas de todas as mídias estão repercutindo desde ontem a dramática ocorrência em uma escola pública de São Paulo. Eu tenho escutado e lido que a causa deste evento absurdo, onde um aluno mata uma professora a facadas, reside na falta de estrutura das escolas, no baixo investimento na educação e na falta de acesso a serviços de saúde mental de qualidade para a maior parte da população.

Por obra do destino ou porque nos EUA este tipo de fato é mais frequente, no mesmo dia houve um ataque a uma escola PARTICULAR em Nashville que deixou seis mortos, dentre os quais três crianças. Até o momento deste meu artigo não haviam divulgado as motivações da atiradora americana, mas não me parece que o problema lá seja por falta de investimentos.

Sim, a educação deve voltar à pauta de discussão, mas não adianta fazer investimentos na educação e em serviços de saúde mental sem compreender o cenário mais amplo no qual todos nós estamos inseridos, que vai muito além da escola. Precisamos entender que tipo de ser humano é este que estamos alimentando todos os dias com nossos pequenos atos. Acho até que seria melhor nos perguntarmos se não estamos levando à inanição o que ainda resta de humano em nós.

É natural que ao pensar em violência pensemos em educação, mas vamos à verdade nua e crua. Sentar-se no sofá fantasiando um mundo melhor, esperando que as autoridades prendam os criminosos para você se sentir mais seguro ou segura, não vai ajudar em nada. Uma mudança de cenário depende do que você, sim isso mesmo, VOCÊ, vai fazer com a parte que te cabe deste latifúndio, chamado Brasil. (Vamos deixar o resto do mundo fora disso por enquanto).

O governador do estado de SP, no mais puro exercício de uma demagogia barata, disse que vai colocar um policial armado nas escolas. Vocês acham que isto vai mesmo resolver? Colocar mais um ser cuja profissão é desprivilegiada e despreparada para tomar conta de jovens estudantes? E carregando uma pistola?

Esqueçamos nossos “desgovernantes” por um momento e voltemos à educação. O que vem acontecendo no ensino, e na nossa vida de uma forma geral, é que estamos perdendo a capacidade de PENSAR. Nosso sistema de aprendizado é similar ao de uma programação de computadores que visa o maior percentual de acertos nas provas objetivas do vestibular. O ChatGPT da OpenAI foi aprovado nas provas mais importantes do mundo, mas o ChatBot celebridade é capaz de mentir sem sentir o menor remorso ou preocupação com a consequência das suas respostas. O ChatGPT sabe pensar? Acho que não.

Um artigo do financial times ano passado trouxe de volta o ensaio de 2015 de Barry Schwartz sobre o que realmente significa aprender a pensar. Schwartz, que é um psicólogo que estuda a intersecção da psicologia com a economia, diz que para saber pensar é preciso ir além das habilidades cognitivas como perspicácia analítica ou flexibilidade conceitual. Ele fala que é fundamental ter “virtudes intelectuais”, como por exemplo: Amor à verdadeHumildadeEmpatiaImparcialidadeCoragem, Saber ouvir, Honestidade e Perseverança. Este ensaio inclusive me motivou a gravar um vídeo com o título “Você saber pensar?” cujo link deixo aqui. (Acesse o vídeo).

Foi Hannah Arendt que cunhou o termo “Banalidade do mal“, referindo-se a um fenômeno de afastamento da pessoa do seu lado mais humano, onde há uma recusa da reflexão e da responsabilidade de seus atos. 

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Hanna Arendt

O conceito de Banalidade do Mal de Arendt foi pensado a partir de um contexto político historico relacionado à segunda guerra mundial e ao holocausto. Ela era judia e esteve presente no julgamento do oficial do serviço secreto nazista Adolf Eichmann em 1961. Dentre os fatores que caracterizam este conceito ela destaca o fenômeno das sociedades de massa onde os valores tradicionais são diluídos e relativizados, fazendo com que o indivíduo massificado seja incapaz de pensar por si, tornando-se uma ferramenta nas mãos do sistema a que serve.

Nós não vivemos em um sistema de cultivo ao ódio tão explícito e estruturado como o nazismo, mas quanto de intolerância ainda existe porque estamos permitindo que atrofiem nossa incapacidade de refletir? Quanto de nossos valores humanos são equiparáveis aos valores atribuídos às máquinas, tais como produtividade, erro zero, preço etc.

Arendt foi duramente criticada e perseguida pela comunidade judaica porque, após presenciar o julgamento de Eichmann, ela escreveu uma série de artigos para o New York Times dizendo que o número de mortes no holocausto poderia ter sido menor se os nazistas não contassem com a colaboração de muitos judeus. Ela causou ainda mais indignação entre seus leitores porque escreveu que não via em Eichmann alguém perverso, raivoso ou até mesmo antissemita. Ele era apenas um cumpridor de ordens.

A atiradora americana e o adolescente que esfaqueou a professora em São Paulo são responsáveis por suas escolhas criminosas e merecem sofrer duras consequências por seus atos assim como foi com Eichmann. Resta saber que tipo de condenação caberá àqueles que olham para o lado, fingindo que o problema não é deles e que dão o exemplo de como fazer para nos afastarmos de nossas capacidades mais humanas, de pensar e sentir.

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